Travessia.

A Barca (2019), de Nilton Resende

Por Júlia Figueira e Perrotti

Na escuridão, o barulho do barco. Um farol, uma buzina. A imensidão do rio assim como a imensidão da noite invade a tela, como se tudo estivesse submerso no escuro e nas águas. A barca atraca lentamente, um convite para nos juntarmos à sua navegação fantasmagórica, na medida em que a personagem embarca e se depara com as figuras com as quais dividirá sua jornada noite adentro.

Lento como o correr das águas, o filme segue, solitário. A mulher, uma mãe com seu filho de colo, um bêbado que dorme e a barqueira, que carrega as pessoas e suas histórias pela noite tal qual Caronte barqueiro de Hades, conduzindo as almas no eterno ir e vir pelas águas dos rios Estige e Aqueronte. O filme de Nilton Resende nos transporta com essas personagens para um lugar misterioso -, a própria “barca” consiste no lugar misterioso -, margeados pela incerteza e pelos acontecimentos inesperados da vida. A mãe carrega o filho no colo, morto ou vivo, uma continuação do filho que se foi, o substituto de fim quase tão trágico quanto o primeiro. Assim como no conto de Lygia Telles, “Natal na barca”, a personagem principal se impressiona com a fé dessa mãe e sua espécie de apatia, que se revela não como uma apatia, mas uma força de continuar apesar dos infortúnios e abandonos das pessoas que uma vez foram alicerces da sua vida humilde. “Como poderia um ser de tamanhas infelicidades mas de tamanha crença em um poder maior?”, a passageira parece se perguntar.

Nilton Resende projeta na própria barca as incertezas, a fé e o destino, materializadas pelas personagens, pelo tempo e pelo movimento nas águas, que segue pelo rio como o fio da vida. A narrativa também navega nesse flutuante espaço, entre o misterioso e real, envoltos pelos sons do motor e do rio, que nos transportam para o lugar místico, a outra vida, a passagem. O filho vivo/ morto, como o renascimento, a força da mãe e o descontrole que temos sobre os acontecimentos da vida. No curta de Nilton, ao ver o rio se estender ao fim, pensando se a mulher teria barganhado sua jornada para presentear a vida ao menino, vemos como ela o sacrifício da calmaria para uma felicidade clandestina, coadjuvamos as turbulências e tristezas, dormimos ao lado e conduzimos servis a embarcação. Navegamos como o barco, os passageiros e o rio.