Inabitáveis (2020), de Anderson Bardot
Por Ana Júlia Silvino
Operando sob a ótica da arquitetura política dos usos do corpo, Inabitáveis (2020) é um reflexo da transversalidade intrínseca do corpo social. O filme de Anderson Bardot apresenta, logo na primeira sequência, uma mise-en-scène de dois homens explorando o tocar. Em um primeiro momento, não sabemos se é uma luta ou uma dança, e a iluminação dinâmica, ao fazer o uso do vermelho para iluminar o rosto desses homens negros, indica uma tensão instrínseca à relação que está dada. Ao final da performance, aplausos. Essa imagem tão carregada de símbolos dá o tom do filme, onde sexualidade e corpo são inefáveis, inconscientes e pré-reflexivos.
O filme, ao apresentar uma leitura dos jornais datados ao período de escravidão no Brasil em paralelo com imagens atuais, questiona a forma em que a modernidade criou políticas que justificaram o apagamento de corpos sob a certificação da ciência. Na construção narrativa, a maneira com que os homens servem-se de seus corpos é colocada tanto como elemento palpável quanto como uma alegoria imaginativa. Ao rememorar as condições desumanas da escravidão ou, em algumas passagens, a maneira com que as pessoas escravizadas precisaram reagir com a força para conseguir a liberdade, o filme leva a emancipação, sobretudo simbólica, para as técnicas do corpo.
A montagem é outro elemento que contribui para uma construção imagética carregada de simbologias, nela os diálogos são cortados abruptamente, indicando ao espectador que ele já ouviu o que precisava ouvir. Além disso, o filme ao colocar cenas de performance, construídas em uma espécie de afro surrealismo – onde todos os ‘outros’ que criam a partir de sua experiência real são surrealistas – quebra a linearidade. Não sabemos o que está na esfera da teatralização e o que é a realidade.
A cena final, protagonizada por um personagem que socialmente já quebra barreiras sociais, mas que ainda aspira conseguir tensionar esses sentidos nas técnicas corporais, é potente ao trazer o corpo e a política como fundantes. Ile – já que a linguagem neutra é imprescindível – transforma a rua em palco para sua performance e, embaixo de uma chuva, transmite tudo aquilo que não precisou ser dito. Aqui, o tom inefável da dança tem seu lugar de maior evidência. Por fim, um carro de polícia traz o vermelho para a iluminação, remetendo à primeira cena do filme. E, nos créditos, a música Deixa a gira girar leva o filme novamente para a esfera do sonho, um processo de passagem onde é difícil mensurar o que habitava antes desse belíssimo retrato fílmico.