Natal nos Trópicos

A Barca (2019), de Nilton Resende

Por Raphael Domingos

A Barca (2019), adaptação do conto Natal na Barca, de Lygia Fagundes Telles, é uma espécie de história de natal às avessas. As questões morais e religiosas estão no curta como nos tradicionais contos natalinos, entretanto, elas são reveladas de maneira mais ambígua do que uma “moral da história”, e um tanto assombrosas demais para serem ensinadas às crianças. A magia do Natal dá lugar a um mistério e, invés dos signos natalinos – a neve, as cores, a família –, temos no filme um rio lúgubre e uma noite mórbida.

Uma mulher viaja de barca, junto de uma condutora misteriosa, uma mãe que afaga seu filho febril e um bêbado inconsciente. A mãe puxa assunto com a mulher e fala sobre sua vida, explica que está atravessando o rio para levar o filho a um médico, conta (sempre simpática) que perdeu um filho e que o seu marido a abandonou há poucos meses. Há uma discussão sobre fé e conformismo que pode ser considerada o tema da narrativa, no entanto, o que de fato rompe com as histórias natalinas e torna o filme tão interessante é a sua ambientação, se passando em uma noite abafada típica de um dezembro nos trópicos.

A barca que dá título ao curta é colorida, repleta de enfeites de natal e de luzes roxas neon. Essas cores contrastam com o negro absoluto da água do rio durante a noite, dando-lhe um aspecto sobrenatural. O silêncio do filme só é quebrado pelos diálogos, pelo choro do bebê e pela canção de ninar cantada pela mãe, além do som de um motor que se repete por toda a metragem. Aliado a isso, as perguntas sem respostas nos diálogos e a falta de assombro das personagens criam um clima onírico para o filme. Esperamos uma revelação no final da travessia, mas a barca segue tão lenta que parece não levar a lugar algum.

A direção de Nilton Resende e a montagem de Lis Paim são fundamentais para tornar o curta tão imersivo. A barca tem planos longos e acompanha o tempo narrativo, trabalhando com a cadência necessária para transmitir ao espectador a sensação de deslizar vagarosamente por águas misteriosas. Esse foi o primeiro filme dirigido por Nilton Resende, poeta e escritor alagoano, e também grande conhecedor da obra de Lygia Fagundes Telles, tendo inclusive um livro publicado sobre a autora. Ele consegue adaptar bem o clima sombrio do conto para o cinema por conta do ritmo de sua direção que, aliado a toda a parte técnica e ao roteiro com poucas ações, privilegia a criação de um filme atmosférico.

O final do curta é surpreendente e aberto. Seria um milagre de Natal, neste caso sem cantorias e presentes, ou seria algo da cabeça da personagem, certamente afetada pela estranheza daquela viagem? A barca é uma excelente adaptação, conseguindo através dos recursos do cinema trazer a imersão e o silêncio da escrita da grande Lygia Fagundes Telles.